Questionando dogmas

Para Décio Luiz Gazzoni, da Embrapa Soja, a agricultura familiar é fruto do pensamento politicamente correto

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Um dos princípios basilares da ciência é o questionamento permanente. Dogmas são fundamentos religiosos, não científicos. Em ciência, a verdade é sempre a última verdade, faz parte do cotidiano o permanente questionar, na busca da construção da verdade. Apesar disso, parte do estamento intelectual das nossas instituições científicas abdicou da obrigação de questionar determinadas afirmativas sempre que partiam de uma autoridade governamental, quando sua obrigação seria fazê-lo enquanto houvesse qualquer dúvida razoável por esclarecer.

O fenômeno pode ser parcialmente explicado pela onda do “politicamente correto”, ou seja, determinados temas estariam acima do bem e do mal, seriam inquestionáveis. No universo da agricultura, temas como agricultura familiar, agricultura orgânica e similares incluem-se nessa categoria. Na década passada, contestar a reforma agrária, que sempre foi um tema de polêmicas apaixonantes, era o suprassumo da incorreção. O que ocorreu nesse período pode ser resumido em uma frase latina: “Brasilia locuta tollitur quaestio”. Em livre tradução significa que, se uma autoridade do Governo Federal falou, então a questão não deve ser discutida, jamais deve ser dito “O rei está nu!”.


Reforma agrária

Entrementes, apesar do risco ao fazê-lo, alguns questionamentos foram antepostos e eu fui um permanente questionador de verdades impostas. Relembro, como um dos exemplos, o questionamento público que fiz quando o Incra anunciou que, até 2007, assentara mais de 1,5 milhão de famílias em 30 anos, que ocupariam uma área de 63 milhões de hectares e que a agricultura familiar responderia por mais de 50% do PIB agrícola do Brasil. Achei os números muito elevados e fui verificar a série histórica de área cultivada e produção colhida no Brasil, disponíveis na FAO, no IBGE e na Conab.

As estatísticas mostravam que nos 30 anos mencionados, a área cultivada no Brasil havia aumentado apenas 9 milhões de hectares. Mesmo que essa área proviesse tão somente de assentamentos – e não o era! – ainda faltariam 54 milhões de hectares, nos quais, pela produtividade da época, seria possível produzir 193 milhões de toneladas. Publiquei um artigo com a pergunta óbvia: Cadê a produção? Não é um volume que pudesse ser escondido ou sonegado, pois significaria aumentar em 147% a produção brasileira. Para tentar forçar a discussão, provoquei aventando hipóteses extremadas: a) Nunca foram assentados 63 milhões de hectares, sequer 10% disto; b) A produtividade dos assentados é ínfima, servindo apenas para o autoconsumo; c) Em geral, os assentados recebem a terra e não produzem, pois sua sobrevivência está garantida por outros programas assistenciais; d) parte dos assentamentos viraram área de convivência e não de produção. O texto está disponível neste link.

Escusado informar que jamais recebi resposta ou fui contestado, afinal “Brasilia locuta causa finita”, petulantes e inconvenientes como eu devem ser olimpicamente olvidados.

Agricultura familiar

Não fui caso isolado. O Prof. Rodolfo Hoffmann (Esalq/USP), cuja trajetória acadêmica e orientação ideológica o tornam insuspeito, reagiu quando autoridades do Governo Federal afirmaram que a agricultura familiar produziria 70% dos alimentos consumidos no Brasil. O Prof. Rodolfo não usou meias palavras: “A afirmativa é falsa. O valor monetário de toda a produção da agricultura familiar corresponde a menos de 25% do total das despesas das famílias brasileiras com alimentos”. A íntegra do artigo pode ser lida aqui.

Em seu artigo, usando a definição legal de agricultura familiar, o prof. Rodolfo foi direto ao busílis da questão: “É espantosa a reprodução sem crítica da porcentagem porque a afirmativa, em si, não faz sentido. Falar em ’70% dos alimentos’ torna necessário definir o total de alimentos. Somam-se toneladas de soja com toneladas de uva e toneladas de açúcar? Toneladas de açúcar ou toneladas de cana-de-açúcar? Toneladas de trigo, de farinha de trigo ou de pão? Toneladas de soja ou de óleo de soja? Dada a grande heterogeneidade dos alimentos, é um absurdo somar as quantidades físicas. ”

Desconstruindo o sofisma

Como convém a todo o cientista, o Prof. Rodolfo não ficou apenas no discurso vazio, mas fundamentou sua contestação em fatos e números, utilizando informações oficiais do próprio governo para desmentir as autoridades. Com base nos dados do IBGE (Censo Agropecuário de 2006), encontrou números totalmente diferentes da versão oficial. Verificou que a agricultura familiar participou com 83,2% da produção de mandioca, 69,6% do feijão, 33,1% do arroz e 14,0% da soja. Os números do Censo mostraram que 29,7% das cabeças de bovinos, 51,2% das aves e 59,0% dos suínos pertencem à agricultura familiar, na qual trabalham 12,3 milhões de pessoas.

O Prof. Rodolfo foi além, analisando os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2008-2009, que permitem avaliar a contribuição dos diversos alimentos para a nutrição dos brasileiros. Para esse levantamento, o IBGE usa uma amostra de pessoas com idade igual ou superior a 10 anos, registrando o seu consumo alimentar ao longo de 24 horas. O IBGE também disponibiliza uma tabela que permite calcular a energia e os nutrientes fornecidos pelos alimentos.

De posse dessas informações, o Prof. Rodolfo verificou que aqueles constituídos essencialmente por mandioca (aipim, macaxeira, tapioca, farinha de mandioca, etc.) fornecem apenas 2,3% da energia total dos alimentos consumidos. Também comparou o valor da produção da agricultura familiar com o total da despesa com alimentação das famílias do Brasil. De acordo com os dados da POF, o total da despesa anual com alimentos era R$ 292,6 bilhões. Assim, o valor da produção da agricultura familiar corresponde a 21,4% do valor total das despesas com alimentos das famílias do País.

Questionar é preciso

O Prof. Rodolfo assim finaliza seu artigo: “Como neto de imigrantes alemães que criaram seus filhos no Brasil com base na agricultura familiar, nada mais distante das intenções de quem escreve do que reduzir a importância que o leitor atribui à agricultura familiar. Mas a afirmativa de que ‘A agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil’ não tem base e, pior, não tem sentido. O reconhecimento da importância da agricultura familiar no Brasil não precisa de dados fictícios. ” Ele só não utilizou a expressão fake news porque Trump ainda não a havia popularizado!

É lamentável verificar que a afirmativa de que 70% dos alimentos consumidos no Brasil provêm da agricultura familiar ainda continua a ser repetida. Mas, para o bem da agropecuária brasileira, é fundamental aprendermos a lição de que a fase dos dogmas inquestionáveis, se pronunciados por uma autoridade, deve ser relegada ao lugar da história que lhe seja mais apropriado. Assim, lanço o epíteto: Questionar é preciso!

*As opiniões expressas nos artigos não necessariamente refletem a posição do Portal DBO.

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