Vinte nove genes, uma reflexão para o agro

O pesquisador Sérgio Raposo de Medeiros, da Embrapa Pecuária Sudeste, traz alguns enfrentamentos que estão na ordem do dia dos produtores rurais, impostos pelo novo coronavírus

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Sérgio Raposo de Medeiros, pesquisador da Embrapa Sudeste

Não há como escapar. Aonde quer se busque alguma informação, o novo coronavírus dá o ar de sua (des)graça. Não fugiremos à regra, mas tentando aproveitar as muitas lições oferecidas por ele. Segue a tentativa abaixo, procurando colocá-las também no contexto do ambiente rural, na esperança de também dar algum alento em meio a tanta dor e incerteza:


  • Humildade: Nós, os Homo sapiens, ocupamos todos os espaços do planeta terra, chegamos à Lua, mandamos sondas para o espaço interestrelar, deciframos nosso genoma e já temos ferramentas para repará-lo (ou aperfeiçoá-lo). Esses inúmeros feitos fantásticos acabam criando um sentido inflado de autossuficiência e arrogância. Pois bem, um envelopinho proteico-gorduroso com vinte nove pares de genes foi capaz de dar um “freio de arrumação” na humanidade, expondo nossas imensas limitações e impressionantes vulnerabilidades frente a um inimigo de estatura nanométrica. Colocando na nossa vida rural, podemos lembrar das vezes que, como um setor tão fundamental para a economia, ao recebermos críticas, com ou sem algum fundamento, respondemos sem pensar e sem procurar entender os motivos dos ataques, criando uma imagem arrogante e, frequentemente, apenas amplificando-os. Uma abordagem mais empática, ou seja, colocando-se no lugar de quem crítica e humildemente procurando reconhecer se não temos como progredir em algo. Pode ser o começo de um novo processo de melhoria e valer por muitas campanhas de publicidade.

 

  • Simplicidade: Além da lição desse Ippon que o “simples” (29 genes) deu, deixando o “complexo” (3 bilhões  de genes) prostrado no tatame, chamou muito a atenção ser o prosaiquíssimo ato de lavar as mãos uma das medidas mais eficazes para controlar a disseminação. E, nas fazendas, lembramos da legítima e correta procura de touros com DEP genômica, inseminação artificial em tempo fixo, balanças eletrônicas e aditivos de última geração, contudo descuidamos de coisas tão simples como o fornecimento do sal mineral, a qualidade e quantidade da água e a fertilidade do solo. Uma lembrança, então, para cada um rever como está se saindo no básico, pois o resultado do que se está construindo acima dele, depende muito disso.

 

  • Interdependência: Outra lição que talvez ainda nem todos tenham se dado conta da exata dimensão, é a importância de cada indivíduo para a vida em coletividade. Quando o isolamento social foi a receita encontrada para achatar a curva e tentar evitar o colapso de nosso sistema de saúde, tivemos que decidir quem seria mantido nas ruas para não faltar o básico. É muita gente, em muitos setores e pelas mais diversas razões. Mesmo com tantos ainda nas ruas e mais tantos outros no teletrabalho, a cada momento, percebemos algo do dia-a-dia que nos faz falta. Essa situação ajudou a revelar como somos dependentes uns dos outros e como todos são importantes para o todo funcionar. O médico tem habilidade para salvar o paciente em estado gravíssimo, entretanto, se o empregado responsável por fazer uma polia usada no respirador deixar de fazê-la, e o equipamento estiver inusável, só nos resta chorar mais uma morte. E no campo é a mesma coisa: do mais simples empregado ao mais estrelado consultor, todos ajudam juntos a fazer a diferença e devem ser tratados com o mesmo respeito e consideração. Quem age assim, ouve a todos sem preconceito, e costuma ter informações mais completas, permitindo melhores ajustes e decisões.

  • Solidariedade: É muito reconfortante testemunhar tantos atos de solidariedade espontâneos. São inúmeras iniciativas desprovidas de outro interesse que não atender à necessidade ou trazer algum conforto para o próximo. O setor rural tem uma longa tradição de beneficência, mas os bons exemplos podem incentivar mais ações e, principalmente, novas formas de fazê-las. Assim, mantendo as tão necessárias iniciativas de caridades pontuais, tentar, cada vez mais, associá-las àquelas mais estruturantes. Nesse sentido, nada melhor do que investir em educação, em especial, de crianças. O mundo está cada vez mais complexo e exigente e, portanto, melhorar o nível educacional é, não só o passaporte para um futuro melhor, como também a garantia de termos cidadãos mais capazes de entender o mundo e o papel de cada um nas crises, como a atual.

 

  • Criatividade: Impressiona, também, a capacidade das pessoas acharem alternativas criativas, desde aquelas para escapar do tédio do isolamento social até meios inovadores para salvar vidas. No primeiro caso, pode ser o jogo de bingo com vizinhos, cada um na sua varanda ou o frescobol jogado na janela de apartamentos diferentes no 11º andar do prédio. No caso do segundo caso, um bom exemplo é o uso de equipamentos de mergulho adaptados como respiradores aos enfermos graves de Covid-19. Entre a diversão e salvar vidas, surgem inúmeros exemplos de comerciantes e empresários achando formas de, sem quebrar o isolamento, reduzirem seus prejuízos, por exemplo, fazendo parcerias com negócios autorizados a funcionar para distribuir seu produto. Há também quem esteja fazendo vendas futuras com desconto e, até, parcerias com seus concorrentes. Também no meio rural é comum ser necessário improvisar e a criatividade sempre vicejou nos campos do Brasil, mas, exatamente nessa parte de parcerias parece haver chance de que algum desses novos modelos possa ser a inspiração que falta para incentivar parcerias visando à redução de custos, na compra, ou melhorar margem nas negociações de venda.

 

  • Relatividade dos números: A quantidade cavalar de números, gráficos logarítmicos e porcentagens aos quais temos sido expostos é um grande desafio para a quase totalidade da população, na qual me incluo, apesar de ter alguma vantagem por obra do meu ofício. Um ponto importante que esse vírus corona também veio no ensinar é como valores aparentemente pequenos podem esconder potencial de grandes danos. O coronavírus Sars-Cov-2, nome oficial do nosso atual pesadelo, e que causa a doença chamada Covid-19, tem hoje uma taxa de letalidade (TL) próxima de 3 %, todavia com grande variabilidade entre os dados de cada país. A TL, é simplesmente a divisão de quantas pessoas são reportadas como mortas pela Covid-19, pelo número de pessoas reportadas como infectadas. O principal motivo da variação é a grande incerteza dos dados, particularmente do denominador, pois sabemos que o número de infectados está imensamente subestimada. Neste início de abril, algumas inferências indicariam esse valor como perto de 1%. Exagerando o conservadorismo, vamos assumir uma TL dez vezes menor, 0,1%, ou seja uma pessoa morta a cada mil infectadas. Como o grande trunfo desse vírus é sua capacidade de alastramento, o denominador potencial do Brasil é 210 milhões de infectados, ou seja podemos prever até 200 mil mortos[1]até o final da pandemia. Logo, fica claro todo o cuidado necessário com porcentagens e as armadilhas escondidas em valores aparentemente pequenos. Trago um exemplo que envolve algo que afeta grande e diretamente o agro. Há alguns anos, fiz algumas considerações sobre isso no contexto das mudanças climáticas, rebatendo um dos argumentos usados por um “ilustre” negacionista. Segundo ele, o “…CO2 não subiu quase nada” de 0,0033%, em 1958, para 0,0040% atualmente, o que a maioria das pessoas, vendo tantos zeros do lado direito da vírgula, tenderia a concordar. A primeira indicação de má-fé científica é apresentar o valor como porcentagem, pois os valores de concentração de CO2 são usualmente comunicados em partes por milhão (ppm), evidentemente por ser muito melhor comunicar dessa forma (compare digitar uma forma e outra!). Seja qual for a unidade, o importante, contudo, é a magnitude da alteração que, no caso foi de 21% (400 ppm/330 ppm = 1,21). Comparado aos valores de meados do século XIX, previamente à Revolução Industrial, a variação é de quase 40%. O aumento do teor de CO2 é o grande motor do aquecimento global e a temperatura nesse mesmo período já aumentou quase 1º.C em relação à média pré-industrial. Muitas pessoas acreditam ser também esse valor pequeno, mas ele é gigantesco ao se considerar ser a temperatura média de toda a atmosfera do mundo. É muita energia. No fim, importa mesmo o quanto o aquecimento global se faz sentir, nos recordes de fenômenos extremos, como a última temporada de incêndios na Austrália, as secas recorrentes da Amazônia ou no desastre que foi a seca do Rio Grande do Sul nesta safra e tantos outros exemplos.

  • Informação: Outra grande vítima do novo vírus é a verdade. Uma parte das distorções têm ocorrido porque, infelizmente, uma questão de saúde pública foi cooptada pela política e, assim, cada grupo político se apossou de informações e as deu contexto ou, simplesmente, as deturpou, de acordo com à necessidade de adaptar àquela narrativa que justificaria seu ponto de vista. Mesmo muita gente imune à politicagem barata acaba contribuindo com a má informação ao repassar mensagens sem checá-las, primeiro através do filtro do bom-senso, mas, com um pouco mais de boa-vontade e energia, checando em fontes de notícias oficiais, fontes que tenham credibilidade ou, pelo menos, tenham CPF ou CNPJ identificáveis, de forma que possam ser devidamente questionadas e responsabilizadas. Na rotina da produção de alimentos, esse aprendizado é de grande valia, pois a boa informação é um insumo de produção, assim como sementes e adubo. Checar informações, identificando fontes mais seguras permite fazer escolhas mais racionais e facilmente se paga. O contrário também é verdadeiro: Fake news é prejuízo na certa!
Foto: Divulgação.
  • Acreditar (mesmo que desconfiando) na Ciência: A ciência foi colocada no foco de todos por conta do novo vírus corona. Toda a humanidade se volta à ciência e mesmo as crianças esperam que “algum maluco de avental em um laboratório fedido”[2] encontre a bala de prata: uma vacina. Além disso há muitas outras contribuições científicas: as modelagens epidemiológicas, soluções de engenharia para equipamentos de saúde, teste de drogas, desenvolvimento de diagnósticos em tempo real e tantos outras. Num tempo abundante em terraplanistas, negacionistas das mudanças climáticas, movimentos anti-vacina e outras tendências obscurantistas com tanto espaço no mundo internético, talvez seja uma das principais lições a serem tiradas: não só dar mais ouvidos à ciência, mas estimular investimentos em cultura científica. Isso ajudaria a estimular futuros novos cientistas que enxergassem nessa profissão tanta atração quanto nas mais procuradas de hoje. Além de poder aumentar a base de talentos para a ciência, mesmo os jovens que seguirem outro caminho, serão certamente cidadãos mais capacitados para o julgamento de questões que frequentemente todos somos instados a opinar, como alimentos com transgênicos ou uso de células tronco. Antes que alguém me lembre: A ciência tem, sim, sua própria galeria de grandes micos, algo a se esperar, pois sendo uma atividade humana, reflete todas as qualidades e defeitos da espécie. Deve-se lembrar, contudo, que, mesmo quando a ciência coloca sua luz no caminho errado, em geral, é no exercício de mais ciência que se redireciona o foco e conseguimos retornar ao bom caminho.

 

  • Tempo de aprendizado: Nelson Mandela, o grande líder do movimento contra o Apartheid e,  após seu fim, pela pacificação na África do Sul, costumava dizer que na vida dele não havia derrotas, apenas vitórias e aprendizados, obviamente trocando as derrotas pelos ensinamentos proporcionados a ele.

 

  • …e de esperança: Que não nos falte humildade, solidariedade, criatividade, boas informações e boa ciência. Todas elas são fontes de esperança para renovar a crença de sairmos dessa melhores do que entramos. Que, após essa duríssima travessia até o fim dessa pandemia, tenhamos mais uma grande vitória e muitos aprendizados colocados em prática.

[1] Por isso a importância em retardar o avanço e não ter um colapso no sistema de saúde, que aumenta a letalidade da COVID-19 e de outras doenças, já existentes, por falta de leito. O tempo é importante também para, além da população ganhar naturalmente resistência, acharmos tratamentos mais efetivos aos enfermos do vírus e a solução definitiva que é a vacina.

[2] Foi assim que, numa pesquisa, a maioria das crianças representava os cientistas.

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